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A Grande Confusão
Como defender a vida humana em um mundo onde ela está sendo cada vez mais banalizada? Não só, mas também é desprezada, atacada e sacrificada a favor de outros valores que acabam sendo considerados mais importantes, como a liberdade individual, as condições socioeconômicas e o bem da sociedade em geral. Este é o grande desafio que enfrenta quem defende a vida e, de maneira especial, quem defende a vida porque dom de Deus. De fato, a vida humana está no centro da mensagem evangélica, como afirma S. João Paulo II na encíclica “O Evangelho da Vida” (Evangelium Vitae): “Ele não é Deus de mortos, mas de vivos” (Mt 22,32)
Em nossa sociedade cresce cada vez mais e se difunde uma grande confusão com relação à hierarquia dos valores e dos direitos e isto está contaminando também as comunidades católicas e cristãs em geral. Hoje em dia a maior atenção é dada aos problemas, aos valores e aos direitos socioeconômicos. Eles ocupam o maior espaço na mídia, nas escolhas eleitorais, nas decisões políticas e também na consciência das pessoas.
A sociedade, porém, não existiria sem o ser humano. As necessidades e as aspirações de cada pessoa, como o reconhecimento da própria dignidade, a necessidade de segurança, a garantia da liberdade e a tendência de unir-se aos outros para formar comunidade, começando da formação da família, até a organização da sociedade etc., são tendências intrínsecas a todo ser humano, ou seja, fazem parte daquela que podemos chamar de “Natureza Humana”. Mas estas aspirações e valores não tem todos a mesma importância ou peso. Por exemplo: a liberdade sem vida não existe. A liberdade se encontra sempre numa pessoa viva. Numa pessoa morta não tem mais sentido falar de liberdade. A vida, ao contrário, existe mesmo quando a pessoa não tem liberdade. Ademais, enquanto existir vida num ser humano, ele tem a chance de poder conquistar ou reconquistar a sua própria liberdade. A pessoa morta não reconquista mais nada. Portanto a vida é mais importante do que a liberdade, sendo que a “liberdade mais importante é a liberdade de viver” e “o direito mais importante é o direto de viver” pois é a vida que garante a realização das demais aspirações do ser humano.
O pensamento filosófico dos últimos séculos criou uma grande confusão com relação aos valores e aos diretos humanos e à maneira de atribuir a cada um deles o justo lugar dentro de uma ordem hierárquica, que respeite a dignidade de toda pessoa.
A revolução francesa “endeusou” a liberdade, a fraternidade e a igualdade ao ponto de torná-las “tiranos” que mandaram sacrificar muitas vidas humanas, às quais foi negada toda liberdade, fraternidade e igualdade.
A revolução comunista “endeusou” a justiça social e, em nome desta, não somente se sacrificaram muitas vidas humanas como se reduziu a pessoa a um feixe de necessidades materiais, econômicas e biológicas, negando-lhe brutalmente a dimensão espiritual de sua vida.
Todas as revoluções de inspiração de direita, “endeusando” o direito à propriedade e à liberdade individual, sempre usaram as pessoas como meios úteis ou descartáveis para alcançar o poder, com decisões tão desrespeitosas ao ser humano, quanto as decisões das revoluções da esquerda.
A revolução sexual dos últimos decênios, inspirada no marxismo cultural e cuja última expressão é a ideologia de gênero, reduz o homem e a mulher a escravos de suas pulsões sexuais mais baixas, ao ponto de acabar até com sua própria identidade de homem e de mulher, “endeusando” o prazer acima de tudo.
Como nos salvaremos de tudo isto? Só recolocando a “Dignidade de cada ser humano” acima de todos os demais valores que foram “endeusados”, escravizando o homem.
A Justa Ordem Hierárquica dos Valores e Direitos
A dignidade de cada pessoa se promove através do respeito aos “Direitos Naturais (ou Primários) ”, assim chamados porque defendem e promovem diretamente a “Natureza do Ser Humano”. Eles são a base e o suporte para os demais direitos e valores, incluindo o direito à propriedade particular e os direitos socioeconômicos, considerados, porém, como “Direitos Secundários (ou Derivados ou Históricos) ” porque estão em função da “Vida Humana”, respeitada como valor primário.
Eis os Diretos Naturais:
1) O respeito incondicional à vida humana desde a fecundação até à morte natural.
2) O respeito a toda pessoa em todas as suas dimensões, incluindo a dimensão espiritual e a liberdade de consciência.
3) O respeito à família constituída por um só homem e uma só mulher, reconhecendo-se aos pais o direito inalienável sobre a educação dos filhos.
Quando, na hierarquia dos valores, não é respeitado este primado dos direitos naturais sobre os demais direitos, a sociedade se desequilibra e implode sobre si mesma.
O projeto marxista de sociedade implodiu a nação russa, pretendendo substituir a família pelo estado, ou seja, desrespeitando o direito natural de formar família, além do desrespeito à vida e a várias liberdades, entre as quais a liberdade religiosa e de consciência.
Os países das democracias ocidentais, nos quais já se difundiu a legislação permissiva ao aborto e agora está se difundindo a legislação favorável à eutanásia e à ideologia de gênero, estão enfrentando o assim chamado “inverno demográfico”. Pela diminuição do índice de natalidade abaixo da taxa de reposição da população, os espaços demográficos que estão ficando vazios serão ocupados por outras culturas, não mais ocidentais, provavelmente pelos muçulmanos. Ou seja a legislação permissiva contra a vida e a família é o início do suicídio da cultura ocidental.
O próprio gigante chinês, que agora ameaça a economia e a política do mundo ocidental, é um gigante com os pés de argila, pois a fraqueza dele está no desrespeito total aos direitos naturais, no desrespeito à vida, à dignidade da pessoa e à família, e cedo ou tarde ele deixará de ser gigante.
Os direitos naturais, por sua própria natureza, são universais e facilitam, como plataforma, a união da humanidade, pois são comuns a várias culturas e irmanam até pessoas de religiões diferentes. O Juramento de Hipócrates, primeiro documento histórico do respeito incondicional à vida do feto humano, surgiu no quarto século antes de Cristo, na Grécia, em um mundo pagão completamente alheio à revelação judeu-cristã. O respeito aos valores da família já se encontrava na cultura do Japão, antes que São Francisco Xavier fosse pregar o Evangelho naquela terra.
A defesa dos direitos naturais faz parte também do pensamento de filósofos que não acreditam em Deus, como do agnóstico filósofo do direito, Norberto Bobbio, que se opôs publicamente à legalização do aborto na Itália. Ademais, os direitos naturais são aqueles que julgam as próprias leis, sejam elas votadas pelos parlamentos ou impostas pelos ditadores. A condenação dos crimes nazistas por parte do tribunal de Nuremberg, na Alemanha, depois da 2ª guerra mundial, foi a partir do desrespeito aos direitos naturais.
Enfim os direitos naturais são o reflexo e a manifestação da dignidade de todo ser humano e, para quem acredita, são o reflexo da sacralidade de toda vida humana criada por Deus por amor. A razão humana, intrínseca à natureza do homem, é aquela que nos faz descobrir a ordem racional de tudo o que existe e que as ciências naturais e humanas cada vez mais descobrem. Para quem acredita, esta ordem racional é reflexo da racionalidade do Deus criador, que é racionalidade infinita. Por isso, o homem com sua natureza racional, embora limitada, é o primeiro caminho da evangelização, assim como afirma São João Paulo II na Encíclica “O Redentor do Homem” (Redentor Hominis). A maneira certa de defender a Vida Humana é, portanto, seguir os caminhos da racionalidade, que se manifesta na natureza humana. A defesa da vida e a questão do aborto não são em primeiro lugar assuntos nem de religião, nem de ideologias filosóficas, mas de Diretos Humanos, ou seja, de respeito pela vida, sendo que a ciência sobejamente demonstra que a vida humana inicia-se na fecundação (ou concepção).
Da razão à fé: a harmonização do ser humano
A partir da racionalidade da natureza humana, toda pessoa pode descobrir a sua própria razão de ser e de existir e, com total liberdade, pode, se quiser, abrir-se progressivamente à descoberta de Deus, o qual a partir da razão humana, se revela na passagem das criaturas ao seu Criador. Ele criou tudo o que existe por e para um desígnio de amor, cuja obra prima é a própria natureza humana, viva e racional. É o que S. Paulo afirma na carta aos Romanos, censurando os pagãos, porque tendo conhecido o poder de Deus, que ”se tornou inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas”, não o honraram como Deus, nem lhe renderam graças” (Rm 1, 20.21). Para quem ainda não se sente preparado para descobrir a ligação entre a racionalidade da natureza humana e a racionalidade infinita e amorosa de Deus, permaneça no estudo e na contemplação desta primeira, ou seja, da natureza humana. Já está fazendo um grande serviço à humanidade e de uma certa forma já está se aproximando de Deus, que sempre está perto de nós, mesmo quando nós não percebemos esta Sua proximidade.
Mas é em Jesus Cristo, Deus e Homem verdadeiro, o único Justo e verdadeiramente racional, que razão e fé se harmonizam, como afirma S. João Paulo II na encíclica “Fé e Razão” (Fides et Ratio). Nesta encíclica o homem é simbolicamente comparado a uma ave. Assim como a ave necessita de duas asas, pois somente com uma não consegue voar, assim também o homem, harmonizando, em sua vida, a fé e a razão, como sendo duas asas, consegue voar, ou seja, viver alcançando a sua plena realização pessoal e social.
Testemunhas da luta em Defesa da Vida Humna
O percurso da razão até à fé, foi o percurso de conversão de alguns defensores do aborto que acabaram se tornando corajosos defensores da vida, qualquer seja a situação em que ele se encontravam, até aderirem à fé, que antes não praticavam.
O Dr. Bernard Nathanson, que em 1968 foi um dos fundadores da NARAL (Associação Nacional para a revisão da Lei do Aborto) nos EUA, a qual levou em 1973 a Suprema Corte Norteamericana a legalizar o aborto até ao momento anterior ao nascimento; foi responsável, como diretor de uma das maiores clínicas de Nova York, pela autorização de mais de 70.000 abortos, 5.000 realizados pessoalmente. Estudando cientificamente os fetos abortados deu-se conta de que se tratava de seres humanos e não simplesmente de material biológico. Mudou de posição e de incentivador do aborto passou a combatê-lo a partir desta simples descoberta científica. Tendo acesso às salas onde o aborto era praticado, mandou filmá-lo pelo ultrassom e preparou ainda em 1984 o vídeo conhecido como “O grito silencioso”. Naquela época não praticava religião nenhuma, sendo filho de judeus não praticantes. Este vídeo, mostrando os horrores do aborto e preparado por uma pessoa praticamente atéia, salvou mais crianças do aborto do que aquelas cuja morte o Dr. Nathanson havia autorizado na clínica da qual fora diretor. Em 1996, doze anos após a gravação do vídeo “O grito silencioso”, ele aderiu a fé e foi batizado na Igreja Católica. Em 1997 esteve presente no 3º Encontro mundial das Famílias no Rio de Janeiro, presidido por S. João Paulo II.
O mesmo percurso, das decisões da razão, até à fé foi seguido por Norma McCorvey, da cidade de Dallas no Texas. Durante o processo ela foi autorizada a usar o nome de Roe. Em 1970 Roe declarou estar gerando o terceiro filho, fruto de estupro, e exigiu que o estado do Texas autorizasse o aborto do feto que já estava na decima oitava semana de gestação. Instaurou-se um processo, conhecido como Roe X Wade, o nome do promotor do estado do Texas. O processo chegou até à Suprema Corte Norteamericana, que em 1973 permitiu o aborto durante os nove meses de gravidez até antes do dia do parto. Neste ínterim Roe já havia dado à luz uma menina, que foi encaminhada para a adoção. Em 1987 Roe confessou que a gravidez não fora resultado de um estupro, mas a mentira serviu para que o movimento feminista, favorável à legalização do aborto, ganhasse a mídia e também influenciasse os nove membros da Suprema Corte. Arrependida pelas desastrosas consequências do processo por ela desencadeado, Norma McCorvey em 1994 se arrependeu e, deixando o seu trabalho numa clínica de abortos (arrependimento inicia-se com um ato de razão para se tornar em seguida uma decisão moral), passou a colaborar com o Movimento Pró-Vida dos EUA. Neste mesmo ano Norma se batizou numa Igreja Evangélica. Em 1998 tornou-se católica e em 2004 tentou, mas sem êxito, que a Suprema Corte fizesse a revisão do Processo Roe X Wade. Faleceu em 2017 deixando-nos um grande testemunho de luta pela Vida.
O terceiro exemplo de luta pela vida depois de ter militado contra ela é o do médico ingrês Alec William Bourne (1886 – 1974). Em 1938 desafiou a própria polícia inglesa declarando que realizaria um aborto numa adolescente de 14 anos vítima de estupro. Ele realizou o aborto e logo foi instaurado o processo, mas no processo ele foi declarado inocente e a partir deste aborto a prática foi difundindo-se em todo o Reino Unido, nas gravidezes vítimas de estupro. Constatando as consequências negativas dessas práticas o próprio Dr. Alec se arrependeu-se da decisão tomada em 1938. Quando a opinião publica do Reino Unido já se tinha tornada favorável à pratica de outros tipos de aborto, além dos que eram praticados em caso de estupro. Em 1966 o Dr. Alec criou a “Sociedade em Defesa das Crianças Não Nascidas” (SPUC) tentando reduzir os malefícios criados pela Lei do Aborto (Abortion Act) votada pelo Parlamento Inglês no ano seguinte,1967. Estes são os nomes das pessoas mais conhecidas, que depois de ter-se deixado enganar pelas forças demoníacas do mal se converteram em ardorosos defensores da vida. Mas muitos outros, pouco conhecidos ou mesmo desconhecidos, mudaram as suas atitudes com relação ao respeito incondicional que devemos na defesa da vida, seja qual for a situação e o nível de desenvolvimento em que ela se encontra.
Brilhou uma forte luz para todos os defensores da Vida quando em 2004 na praça de S. Pedro, São João Paulo II canonizou Santa Gianna Beretta Molla com o título de “Mãe de Família”, uma nova categoria de Santas junto com as Mártires, as Virgens e as Religiosas. Médica pediatra nascida em 1922 em Magenta perto de Milão, na Itália, quando no decorrer da quarta gravidez foi diagnosticado um tumor maligno no útero, ela não quis que o cirurgião operasse o útero, porque assim morreria a filhinha que estava gerando. Exigiu que o cirurgião operasse só aquela parte que não prejudicaria a criança, plenamente consciente do risco de morte que correria. Gianna Emmanuela, a filha, nasceu o dia 21 de abril de 1962, Sábado Santo, e a mãe, Gianna, sete dias depois, aos 28 de abril, no meio de fortes dores, faleceu em seu leito de esposa, com nos lábios o nome de Jesus: “Jesus eu e amo! ”
Significativo o fato de que os dois milagres da beatificação e da canonização aconteceram em nosso país, no Brasil. O da beatificação no Maranhão e o da canonização aqui no estado de S. Paulo, em Franca. Um claro sinal de que as nossas Igrejas são chamadas a difundir esta luz de santidade que consiste na Defesa incondicional da Vida.
O Povo Judeu, ao celebrar a Páscoa, faz memorial de que Deus abriu o caminho no mar, mas, isto não é a lembrança de um acontecimento do passado, mas é um fato atual, porque o “braço de Deus não se encolheu” depois da passagem do Mar Vermelho, mas continua estendido para nos salvar agora. Jesus passando pela morte, implodiu a morte e ressuscitou, passou pela morte e abriu nela caminhos de Vida e continua, hoje também, abrindo-nos caminhos de Vida no meio de tantas mortes, que querem nos assustar. Por isso não podemos desanimar!
Pe. Berardo Graz
Presbítero da Diocese de Guarulhos SP